domingo, 7 de junho de 2009

4.


Projeção histórica


Em 1964, os militares, sob a bandeira anticomunista e com o apoio da burguesia, depuseram o presidente João Goulart (vice de JK e de seu sucessor, Jânio Quadros, que renunciou à presidência) e tomaram o poder, como um regime de exceção, sob o pretexto de restabelecer a ordem no Brasil. Em 13 de dezembro de 1968, o regime de exceção, então presidido pelo general Arthur da Costa e Silva, legitimou-se como uma ditadura ao instituir o AI-5, que, dentre outras coisas, dissolveu o Congresso e colocou a imprensa sob censura prévia.



Samuel Wainer

Grupos e figuras de oposição passam a ser perseguidos e torturados, produtos artísticos e ideias proibidos de circular, comunistas aderem à guerrilha para derrubar os militares e instaurar uma ditadura de esquerda. Milhares de brasileiros deixam o país – por imposição do governo militar ou por conta própria. Samuel, com a Guanabara (estado-capital criado após a inauguração de Brasília, correspondente, hoje, à cidade do Rio de Janeiro) governada por Carlos Lacerda e o Brasil por seus aliados, fora um deles – e vivera anos muito difíceis.
Última Hora. 14/12/1968.

Já separado de Danuza Leão – que se apaixonou por Antonio Maria, cronista de Última Hora, e pediu o divórcio – Samuel fora para a embaixada no Chile e, em seguida, para Paris. Divide 2/3 de suas ações do Última Hora (tanto o do Rio quanto de sucursais) entre Baby Bocaiúva, um dos sócios do jornal, e seu advogado. É traído pelos dois, que se unem e coagem Samuel a vender o 1/3 que lhe resta das ações do vespertino ou comprar as ações que havia transferidos aos dois. Para não perder o jornal que já não tinha valor algum diante do mercado editorial brasileiro, Samuel abriu mão do que ainda restava do seu patrimônio.


Nessa mesma época, a amizade com Juscelino também é desfeita. Rico e exilado após o golpe militar, JK uniu-se a Lacerda, antigo aliado e, então, novo inimigo dos militares brasileiros (por não ter sido aceito como sucessor de Castelo Branco, o primeiro presidente do regime), contra o governo militar. Segundo o próprio Juscelino, isso era necessário para a democracia do país.


Para Samuel, a relação entre os dois ex-inimigos era algo inaceitável, o que levou a afastar-se de JK.


Após uma carreira fracassada como produtor de cinema e o convívio com grandes figuras das artes e intelectualidade européias dos anos 60, Samuel volta ao Brasil em 1968. “Quando deu de cara com a paisagem deslumbrante da Lagoa, ele caiu em pranto”, conta Danuza Leão.


Logo, mudou-se para São Paulo. Trabalhou em diferentes redações, inclusive a do Última Hora paulista, quando esta já tinha outro proprietário.


Em 1977, após ter vendido o que ainda detinha do Última Hora, Wainer tornou-se conselheiro editorial e colunista da página 2 da Folha de São Paulo, onde esteve até morrer, dia 2 de setembro de 1980, aos 68 anos. Não houve inventário de bens. Como herança material, Samuel deixou apenas um aparelho de telefone. Como legado histórico, deixou 53 fitas onde contava a sua história, que pretendia transformar em um livro de memórias, chamado Por uma Razão de Viver. Mas não teve tempo para isso. Quem, então, decidiu transformá-las em livro foi sua filha, Pink Wainer. O jornalista Augusto Nunes, que escreveu o livro de memórias de Samuel, conta que “Pink procurava alguém para transcrever as fitas deixadas por seu pai e me pediu uma indicação. Ao ouví-las, tomei a mim o projeto de transcrevê-las e editá-las. Ao todo, transcritas, as gravações davam mais de 1.300 laudas. Como o próprio Samuel pretendia transformá-las em livros, a ordem dos eventos era completamente desordenada. Tanto que, ao fazer o livro, eu tive que checar informações, confirmar datas que se confundiam. A Pink não sabe, mas, no meio das gravações havia ainda duas laudas datilografas pelo Samuel Wainer. Começavam com algo do tipo ‘Eu devo a minha história a duas pessoas: Getúlio Vargas e Carlos Lacerda’. Não era um bom começo para o livro. Ao escrevê-lo, eu me preocupei em dar uma ordem narrativa, próxima a do roteiro cinematográfico, para torná-la mais envolvente.”. Além disso, o livro “tinha que ser em primeira pessoa, já que era feito a partir do depoimento de Samuel. Ouvi várias vezes as gravações, li e reli seus textos, para captar a sua maneira de falar e transpor para o livro o mais fiel possível à sua voz. Tive que reescrever tudo e organizar o material. Os diálogos, por sua vez, foram mantidos à exatidão do que estavam na fita. Compactei vários episódios e excluí outros; Preferi focar em grandes conflitos e relações como a dele com Carlos Lacerda. Esse material que não foi utilizado existe até hoje”.


Minha Razão de Viver, o título definitivo do livro, escolhido por ser mais sonoro que o anterior, foi publicado pela primeira vez em 1987. Para Augusto Nunes, o livro “foi, de fato, a primeira biografia brasileira. Nas outras, todos os biografados eram príncipes, sem falhas, sem erros. O Carlos Lacerda, em sua autobiografia, é um exemplo disso. Por sua honestidade, o livro causou bastante impacto na época. E fez escola. Depois dela, é que surgiram outros biógrafos, como o Ruy Castro, com “A Estrela Solitária” [biografia do jogador Garrincha], “O Anjo Pornográfico” [biografia de Nelson Rodrigues].”.


É mesmo uma biografia muito honesta. Nela, Wainer deixou de contar apenas a verdade sobre a sua nacionalidade, por conta das pessoas que lhe foram solidárias e mentiram no processo sobre o assunto. Ele pretendia que a verdade a esse respeito fosse revelada apenas 25 anos após a sua morte. Lacerda tinha razão em chamá-lo de bessarabiano. A Bessarábia, um país do leste europeu, era sua terra natal. Os arquivos do colégio Pedro II e o depoimento do irmão de Samuel eram verdadeiros.


Lacerda tinha também os seus apelidos. Wainer, e boa parte do Rio de Janeiro, inicialmente o chamavam de Corvo. Em seguida, passou a ser chamado de “Mata-Mendigos” (alcunha criada por Paulo Francis), por conta de sua ligação nos assassinatos de mendigos no Rio de Janeiro.


Amado Ribeiro, repórter do Última Hora (utilizado por Nelson Rodrigues em O Beijo no Asfalto, como exemplo de repórter inescrupuloso, o que muito o envaideceu), revelou imagens que ligavam Lacerda ao crime, impedindo-o de suceder Castelo Branco na presidência da República durante o regime militar.


Samuel e Lacerda se viram pela última vez em 13 de outubro de 1955, na fase final do processo sobre a nacionalidade do primeiro. Conforme o próprio Samuel conta no livro, “Ele [Lacerda] estava lívido, em momento algum olhou-me nos olhos. Eu, ao contrário, fiquei a observá-lo o tempo todo, contemplando o perfil do homem que na mocidade fora meu amigo e agora tentava destruir-me”. Neste processo, Wainer acabou condenado a um ano de prisão. O depoimento de seu irmão e dos antigos vizinhos do Bom Retiro, não foram o suficiente para inocentá-lo em 1ª instância. Foi absolvido, e liberto da cadeia, apenas em última instância, pelo Superior Tribunal Federal.


Lacerda foi a única pessoa de quem Wainer guardou rancor – tanto que nao conseguiu acreditar que era verdade a notícia de sua morte, em 21 de maio de 1977. Mas era.


Apesar do ressentimento, Samuel não renegava a importância de Lacerda para a sua projeção histórica. Considerava-o um dos três fatores que o levaram a ela. As outras duas: a entrevista com Getúlio Vargas, que o trouxe de volta ao poder, “nos braços do povo” e da criação de “um jornal tão revolucionário que sobreviveria a campanhas de extermínio e crises de todos os tipos”, o Última Hora. (Lacerda, aliás, carece de uma biografia honesta, afirma o jornalista e escritor Ruy Castro. “Mas eu não fazê-la”, disse. “A família do Lacerda já era ligada à política. Este é o trabalho de, no mínimo, cinco anos de pesquisa. E eu não quero passar cinco anos casado com o Lacerda”.).


Além do aparelho telefônico e das fitas, Samuel Wainer deixou a vontade de viver mais uma aventura dentro da imprensa: a criação de um jornal em São Bernardo do Campo, o epicentro do movimento sindical do final dos anos 70. Com o jornal, ele pretendia tocar na modernização do operariado brasileiro da época e iniciaria uma nova aventura, sua, afinal, grande razão de viver. Dificilmente, porém, este jornal seria mais significativo na biografia de Wainer que o anterior. “O Última Hora, com tudo o que ele representava, foi o seu grande momento e a sua grande paixão. Acima de qualquer coisa, do próprio jornalismo.”, diz Augusto Nunes.


No dia 3/09/80, o jornalista Samuca, segundo filho de Samuel, publica um texto na primeira página do Jornal do Brasil intitulado “Samuel Wainer, meu pai”.


Agora, o filho caçula de Samuel, Bruno Wainer, pretende adaptar Minha Razão de Viver para o cinema. “Eu disse ao Bruno que, por conta do trabalho de edição do livro, devo fazer o roteiro.”, diz Augusto Nunes, autor das memórias de Samuel.



Danilo Thomaz

Bibliografia:

Livros:
NUNES, Augusto. Minha Razão de Viver – Memórias de um Repórter. Editora Planeta. 2003.
LEÃO, Danuza. Quase Tudo. Companhia das Letras. Rio de Janeiro. 2005.
FRANCIS, Paulo. O Afeto que se Encerra. Editora Francis. 2005.
CASTRO, Ruy. Carmen – uma biografia. Companhia das Letras. 2005.
CASTRO, Ruy. O Leitor Apaixonado (“Vida e Morte do Correio da Manhã”). Companhia das Letras. 2009.
CASTRO, Ruy. O Anjo Pornográfico (biografia de Nelson Rodrigues). Companhia das Letras. 1992.


Internet:
CPDOC/ FGV – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas: http://cpdoc.fgv.br/
Almanaque Folha de São Paulo: http://almanaque.folha.uol.com.br





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Com este post, o METAJORNALISMO despede-se de seus leitores. Esperamos ter prestado um bom serviço a vocês, explorando fatos pouco conhecidos sobre o jornalismo, trazendo fatos novos e auxiliando-lhes a ter um posicionamento mais crítico com relação à imprensa. Obrigado pelos acessos e comentários.



Danilo Thomaz

Editor-chefe

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