domingo, 7 de junho de 2009




A Construção da História

1.

O Presidente


Getúlio propôs:
“Por que tu não fazes um jornal?”

Samuel Wainer havia avisado Vargas que a imprensa era sua inimiga e que, nela, ele só seria má notícia. O ano era 1951. Getúlio era novamente presidente, pela primeira vez eleito democraticamente, apesar da oposição de todos os veículos jornalísticos da época. Samuel e ele haviam se tornado amigos há dois anos, na fazenda Santos Reis, em São Borja, cidade natal de Vargas, no Rio Grande do Sul. Ali, Wainer realizara a entrevista que trouxera Getúlio de volta à cena política brasileira e, dois anos depois, ao poder. Desde então, o político gaúcho pretendia recompensá-lo.




Samuel Wainer e Getúlio Vargas



Em março de 1949, Assis Chateaubriand havia incumbido Wainer de ir até o interior do Rio Grande do Sul para fazer uma grande reportagem sobre o trigo. Nela, o repórter teria que provar que o Brasil jamais poderia ser autossuficiente na produção da commodity, como interessava a Chateaubriand.

Após entrevistar fazendeiros, produtores e técnicos, Wainer concluiu que a posição de seu chefe era insustentável. E que, pior ainda, seria não defendê-la em O Jornal, veículo onde trabalhava dentro dos Diários Associados, conglomerado de mídia de Assis Chateaubriand.

“Salvou-me desse impasse”, afirma Wainer, “a providencial ideia de tentar uma entrevista com Getúlio Vargas”, pois, ao chegar a São Borja, o repórter do O Jornal havia sido informado que o ex-presidente e atual senador da República pelo Rio Grande do Sul vivia ali e não falava com a imprensa há dois anos, desde 1947.

Getúlio aceitou recebê-lo. “Ele [Samuel Wainer] estava no lugar certo, na hora certa. A entrevista com Getúlio Vargas foi um grande golpe de sorte, que comprova isso. Ele estava próximo dele no momento em que ele diria tudo aquilo para o caseiro, até mesmo para uma cabra.”, afirmou o jornalista Augusto Nunes, autor de Minha Razão de Viver, o livro de memórias de Samuel Wainer. Na entrevista, Vargas falou sobre o momento político do Brasil – a respeito do qual era informado em sua propriedade – e sentenciou:

“Eu voltarei”

A comoção nacional iniciada com a publicação da entrevista – que fez O Jornal 180.000 exemplares, quando sua tiragem média era de 9.000 – levou Vargas a cumprir a promessa. Ele venceu as eleições realizadas no dia 3 de outubro de 1950 com 48,7% dos votos, derrotando Eduardo Gomes, da UDN (União Democrática Nacional), que obteve 29,7% dos votos e Cristiano Machado, do PSD (Partido Social Democrata), com 21,5% dos votos.


Uma grande vitória, sobretudo pelo completo isolamento midiático em que foi colocado Vargas ao longo da campanha eleitoral. Segundo Nunes, “A vitória de Getúlio em 1950 prova que imprensa não é o quarto poder. Tanto que não apenas Getúlio fora eleito em oposição a ela, mas também Leonel Brizola [para o governo do Rio de Janeiro, nos anos 80], e o Lula [para a presidência da República], em 2002. Ela não manda, mas pode atrapalhar muito. A imprensa a favor de um governo só não é pior que o humor a favor. Por isso, o Luis Fernando Veríssimo matou a Velhinha de Taubaté, uma personagem excelente, divertidíssima. Ela acreditava em tudo aquilo que os outros governantes diziam. Quando Lula ascendeu e estourou o escândalo do mensalão, ela iria acreditar também, sendo que o Veríssimo apoiava o Lula e o PT? Não tinha como. Por isso ele a matou e justificou dizendo que era o fim de qualquer esperança. “O Pasquim”, por sua vez, morreu com a ascensão do Brizolismo. Eles apoiavam Leonel Brizola, quando ele ascendeu, não havia mais a quem criticar, com quem brincar.”

O retorno de Vargas à cena política, como presidente da República, deixou Samuel orgulhoso de si. Ele, agora, via agora outro Getúlio. Não o considerava mais a “encarnação do mal”, como nos tempos do Estado Novo, quando Vargas anulou a Constituição de 1934 e, apoiado pela classe dominante, governou o país de maneira ditatorial, com a imprensa e a propaganda sob censura e a repressão de movimentos sociais. Para Samuel, Getúlio, nesse período de reclusão, havia se tornado um nacionalista convicto, consistente, disposto a consolidar a burguesia nacional e fazer justiça social.

Iniciado no dia 10 de novembro de 1937, com o impedimento da entrada dos parlamentares no Congresso e a leitura da nova Carta Constitucional, o Estado Novo durou até a renúncia de Getúlio, em 1945, quando o presidente não tinha mais condições de manter-se no poder, dadas as pressões que sofria dentro e fora do governo.

Nesses oitos anos de ditadura, foram criadas a Rádio Nacional – que veio a se tornar a maior e mais influente do Brasil – e, no final do governo, os partidos que comporiam a cena política do Brasil até o golpe de 1964: o PSD, o PTB (de Getúlio e JK) e a UDN, a principal oposição a Vargas e JK, liderada por Carlos Lacerda.

E era essa oposição protagonizada por Lacerda que desejava impedir a posse de Getúlio em 31/01/1951, o que preocupou os aliados do presidente eleito e sua filha, Alzirinha Vargas. Ao saber desses rumores, Getúlio não se preocupou. Apenas se precaveu. E pediu a Samuel:

“‘Bem, tu conheces o meu pensamento. Redija a entrevista, com pergunta e reposta e, logo mais, após o jantar, vamos revê-la em conjunto’”.

Nela, “Vargas” prometia respeitar a democracia, reafirmava a crença nas Forças Armadas Brasileiras, acenava para a oposição e prometia acordos de paz com os Estados Unidos. Após lê-la, o presidente eleito disse ao jornalista:

“‘Espero te recompensar pelos serviços que me prestasse’”, outra promessa cumprida, pouco tempo depois de tomar posse como presidente da República.

Os companheiros de Vargas, porém, não eram os únicos com aflições para cuidar após sua eleição. Ao vê-lo novamente no poder, Chateaubriand (vulgo Chatô) assustou-se. Mesmo assim, decidiu seguir em frente com a tradição de manter boas relações com quem estivesse no poder e pediu a Wainer que o apresentasse a Getúlio. Wainer aceitou.

“Uma rara insegurança tomou Chateaubriand”, conta Samuel no livro. Mas esta se desfez logo, no contato com Getúlio. “Vargas era um animal político destituído de emotividade, não tinha reminiscências, não tinha idiossincrasias. Getúlio não teria, portanto, maiores problemas para entender-se com Chatô, mas [inicialmente] o dono dos Diários Associados não sabia disso.”, disse Wainer.

Logo desenvolto na presença do presidente eleito, Chateaubriand ignorou novamente do mérito de seu jovem repórter. Mesmo trazendo “um expatriado no fim do mundo” e voltando “com ele ao poder (...) na hora de colher os frutos desse trabalho, nem mesmo merecera um aumento de salário”, disse Samuel, que nunca teve a menor simpatia por Chatô.


Assis Chateaubriand



Chateado, Wainer foi caminhar pela avenida Atlântica, ainda sem o perigo dos assaltos, arrastões, granadas e balas perdidas. 1951. Copacabana era o centro cultural, a morada dos ricos e o lugar mais visitado do Brasil pelos gringos. Ali perto, até meados da década de 40, funcionou o Cassino da Urca, de Joaquim Rolla.


***

Periclitante em seu início, o Urca tornou-se o maior cassino do Rio – desbancando os cassinos Atlântico e do Copacabana Palace, ambos na avenida Atlântica – após contratar Carmen Miranda para apresentar-se nele com seus sambas, marchinhas, sandálias-plataforma. Ali, como crooners, as cantoras Emilinha Borba e a vedete Virgínia Lane iniciaram suas carreiras.


Mas, em 1951, a realidade musical era outra. Os artistas já não tinham os cassinos para se apresentar, apenas as casas de shows e os auditórios das rádios. Nem uma cota que obrigasse empresários do ramo a reservar 50% do seu espaço aos artistas nacionais, como determinara Getúlio em 1935. Os gêneros musicais favoritos do público eram os boleros e samba-canções (versão lamuriosa do samba). Os sambas e marchinhas estavam reservados ao carnaval. Quem quisesse música mais animada, picardia e sensualidade ao longo do ano que fosse assistir às revistas musicais nos teatros da praça Tiradentes.

Era o que Getúlio fazia – mas por apreciar vedetes. A sua favorita era Virgínia Lane, a estrela da companhia Walter Pinto, a maior companhia de Teatro de Revista da história do Brasil. Getúlio chamava Virginia de “A vedete do Brasil”. Difícil saber se pelo talento dela nos palcos ou na intimidade dos dois, que mantiveram um caso atrapalhado pela barriguinha dele. “Mas tudo se resolvia na horizontal”, afirma Virginia Lane até hoje.

No Cassino da Urca, Benjamin Vargas (o Bejo), irmão mais novo de Getúlio, acompanhado de militares amigos, fumava charutos, comia e bebia de graça e dava tiros para o alto. Atitudes que não davam prejuízo algum ao cassino – ao contrário de sua nomeação a chefe de polícia do Distrito Federal, feita por Getúlio, em 1945, o beijo da morte ao já vulnerável seu Estado Novo.


Com o fim da ditadura de Vargas, Eurico Gaspar Dutra é eleito presidente da República e determina a proibição dos jogos de azar no Brasil, por conta dos vícios da primeira-dama, Eunice Gaspar Dutra em apostas. Sem as roletas, baralhos e caça-níqueis para sustentar as apresentações musicais, os cassinos são obrigados a fechar. O prédio em estilo neoclássico que abrigava o Cassino da Urca vai para as mãos de Chateaubriand, em 1950, para abrigar a primeira emissora de TV da América Latina – a Tupi – e servir como veículo de oposição a Getúlio Vargas e Samuel Wainer, através do ódio e do talento retórico de Carlos Lacerda.

É o fim da era de ouro dos cassinos no Brasil. A noite da elite carioca transfere-se definitivamente para Copacabana, onde passaram a ser tomadas decisões que mudaram a história do Brasil. Como a de Samuel.

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