domingo, 7 de junho de 2009


3.


O Inimigo



Carlos Lacerda era da oposição a Getúlio desde o segundo governo do presidente, iniciado em 1934. Então filiado ao PCB (Partido Comunista Brasileiro), Lacerda fora um dos fundadores da ANL (Aliança Nacional Libertadora), movimento de oposição a Getúlio fundado em 1935 numa reunião no Teatro João Caetano, palco das vedetes e revistas musicais, e abortado no mesmo ano, pelas forças militares do governo.


No início dos anos 40, Lacerda fora expulso do PCB após uma reportagem sobre a história do partido que, mal interpretada, levou à perseguição política e morte de alguns filiados.


Certo de que nunca mais voltaria ao partido, dedicou-se ao jornalismo. Em 1943, fora contratado por Wainer para trabalhar na revista Diretrizes – da qual saiu, demitido por Samuel, quando o trabalho tornou-se quase impossível, por conta da arrogância de Lacerda, que vivia em conflito com outros membros da redação.



Demitido da revista, Lacerda passou a atuar como jornalista freelancer. Em fevereiro de 1945, burlou a censura do Estado Novo e publicou, no Correio da Manhã, uma entrevista com o escritor e político José Américo de Almeida, com fortes críticas à ditadura de Vargas e um convite à manifestação popular. Fora o início da queda da queda do Estado Novo de Getúlio, consumada com a nomeação de Benjamin Vargas para o cargo de chefe de polícia do Distrito Federal.


O rancor eterno de Lacerda a Samuel veio após uma negativa do último em publicar na Diretrizes uma carta de apoio a Vargas na guerra contra as nações do Eixo, dado que isso contrariava a linha editorial da revista.


A publicação carta na Diretrizes era a última chance que Lacerda tinha de voltar ao PCB (Partido Comunista Brasileiro). Diante da negativa do editor de Diretrizes, Lacerda reagiu com agressividade. Segundo Samuel, “Ele arrancou-me a carta das mãos e dirigiu-me um olhar que jamais esqueci. Era um olhar de frustração e ódio.”.


Ressentido, tempo depois, Carlos Lacerda filou-se à UDN (partido que representava a direita mais conservadora que havia no Brasil; o extremo oposto do PCB) e, nos anos 50, encontrou seus dois maiores inimigos, Samuel Wainer e Getúlio Vargas, juntos. Tomou a si o papel de principal força opositora a Vargas, Samuel e o Última Hora.


Assim como Getúlio, Samuel tinha toda a imprensa contra si. Na falta de um veículo de sucesso para bater em seus dois oponentes, já que seu jornal, A Tribuna da Imprensa, criado com dinheiro da UDN, era um fracasso, Lacerda utilizava-se de dois outros veículos que tinha à disposição: a Rádio Globo, do jornalista Roberto Marinho, e a TV Tupi, de Chatô – o qual, apesar do encontro que tivera com Vargas, pela primeira vez, não era aliado de um presidente.



As críticas a Samuel repercutiam. Lacerda sentia-se, e dizia-se, invencível. “Enquanto andávamos pelas ruas meio vazias de Copacabana, ouvíamos, vindo das TVs dos apartamentos escuros, a voz de Lacerda dizendo horrores sobre Samuel”, conta a cronista Danuza Leão, que fora casada com Samuel Wainer, em Quase Tudo, seu livro de memórias.


Disposto a destruir o Última Hora, seu dono e Getúlio, Lacerda lançou duas acusações: a primeira de que o Última Hora havia sido montado com operações de crédito fraudulento entre o grupo empresarial montado por Samuel para fazer o jornal e o Branco do Brasil; a segunda de que Wainer era, na verdade, estrangeiro, o que o impedia, de acordo com a legislação vigente até os dias de hoje, de ser dono ou sócio majoritário de um veículo de comunicação.

Vários foram os meios utilizados por Samuel para conseguir dinheiro suficiente para montar o Última Hora:


Primeiramente, Samuel Wainer teve que desembolsar 30.000 cruzeiros, com o qual comprou a gráfica do jornal Diário Carioca (que deixou de circular após o golpe de 1964, por opor-se ao regime vigente). O dinheiro veio em três partes: 10.000 cruzeiros foram conseguidos com Walter Moreira Salles, do antigo Banco Moreira Salles, hoje Itaú Unibanco; 10.000 com Evaldo Loudi e mais 10.000 com Ricardo Jafet, presidente do Banco do Brasil na época e herdeiro do Banco Cruzeiro do Sul. Isso, porém, representava uma pequena parte dos recursos necessários para abrir o jornal.


Outra soma em dinheiro, no valor de 22.000 cruzeiros, para reformar a parte gráfica do jornal e comprar papel mais barato, fora emprestada a Wainer pelo Banco do Brasil e dera argumento para que Lacerda começasse a sustentar a ideia de que o vespertino de Wainer fora financiado pelo Banco do Brasil. Em repercussão às acusações feitas por Lacerda, os demais veículos começaram a temer que somente o Última Hora passasse a ser o único beneficiado pelo governo a partir de então – dado que o financiamento governamental à imprensa era uma praxe na época.



A maior parte do dinheiro para que o Última Hora fosse lançado, veio, porém, de “um homem que começava a crescer na cena política brasileira: Juscelino Kubistchek”, então governador de Minas Gerais. Por meio deste, Wainer conseguiu dinheiro de três bancos ligados ao governo daquele estado. “Eram, evidentemente, transações de caráter político, já que eu não tinha condições financeiras de obter tanto dinheiro daquela forma. O pagamento seria feito em publicidade”, conta Samuel.



Porém, fora o controle da falida Rádio Clube o que abalou Samuel Wainer. Para despistar seus inimigos a respeito da aquisição de comando da rádio, o dono do Última Hora transferiu as ações da rádio para o nome de Marcos Rebelo sem a autorização do governo federal (necessária, dado que o sinal de uma rádio é concessão pública, emitida pelo governo federal). Lacerda e Chateaubriand, ao saberem disso, intensificaram os ataques a Samuel, o que fez com que Getúlio, à surdina, buscasse distanciar-se do dono do Última Hora, e ordenasse que a concessão da rádio fosse tirada das mãos de Samuel. A ele, restaram apenas as dívidas da rádio, passadas para o seu grupo, que incluía o Última Hora do Rio e suas sucursais. Samuel, que freqüentava o Palácio do Catete (sede do governo), sem anunciar-se, viu-se desprestigiado pelo presidente.



“Ficou evidente que eu já não era o delfim de Getúlio. (...) se fosse necessário, Getúlio não hesitaria em sacrificar-me. Decidi que chegara a hora de fortalecer minha empresa e prepará-la para a eventualidade de ter de sobreviver sem a mão amiga de Vargas”, diz Wainer em Minha Razão de Viver.


Samuel não contava com a traição de Getúlio. “A relação dele com Getúlio foi diferente de todas as outras que Getúlio tinha. Eles eram cúmplices. Mesmo traído e abandonado por ele, Samuel nunca lhe guardou ódio, ainda que tivesse motivos. Seus elogios a ele, no livro, são totalmente sinceros”, afirma Augusto Nunes.


Apesar da traição de Getúlio, Wainer acreditava que derrotaria Lacerda e Chatô. E cometeu mais um erro. Para a alegria de seus dois inimigos, Samuel estimulou a criação de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para investigar o Última Hora, um grande erro. Só com a CPI instalada é que ele percebeu quão frágil era a base governista e quão disposta ela estava a trair Getúlio Vargas, o verdadeiro foco da CPI e da perseguição a Wainer.

Em 12 de julho de 1953, o Diário de São Paulo publica em sua capa:


“Wainer não nasceu no Brasil”



Lacerda e Chateaubriand tiveram acesso a um documento retirado do Colégio Pedro II, em São Paulo, onde Wainer havia estudado. No documento, Arthur, irmão mais velho de Samuel, afirmava que esse havia nascido na Bessarábia e chegara ao Brasil com dois anos de idade. Para provar o contrário, Samuel e o irmão contaram com o depoimento de moradores do Bom Retiro, que o conheceram ainda bebê e afirmaram ter assistido à sua circuncisão, o que comprovaria a sua nacionalidade brasileira (já que a circuncisão é feita em recém-nascidos).

Temendo os danos que seu jornal viesse a sofrer, ainda em 1953, Wainer sugeriu a Getúlio o fim do Última Hora, por meio de um jogo político, ou que a dívida do grupo que detinha o jornal fosse executada pelo Banco do Brasil. Mas Getúlio demonstrou indisposição para cuidar do assunto. Quando Wainer deixou o Catete, sede do governo federal da época, “pressentindo que não voltaria a pisar” ali “até o final do governo de Getúlio”, este ordenou que a dívida fosse executada pelo Banco do Brasil. Wainer pediu que os demais jornais sofressem o mesmo. “Mas só a do Última Hora foi efetivamente executada”. E paga.


Samuel acabou absolvido na CPI sobre a origem do dinheiro que montou o Última Hora. Não por ser inocente. “O Última Hora recebeu dinheiro do Banco do Brasil, sim. Mas os outros veículos da época fizeram isso também. O que houve com o Samuel, para a abertura do Última Hora, era um retrato do que acontecia na época e por isso ele acabou absolvido no processo. Lembra bem o discurso do presidente Lula, há pouco tempo [abril de 2009], sobre as passagens aéreas [quando o presidente acusou a imprensa de perseguir o Legislativo e disse que era hipocrisia acusar a Câmara pelo uso indiscriminado de passagens aéreas, já que isso sempre fora feito].”, diz Augusto Nunes. Foi preso em primeira instância por falsidade ideológica – ao afirmar ser brasileiro –, mas solto tempo depois.


Getúlio e Samuel passaram a se falar apenas por meio de intermediários. Não havia mais espaço para intimidade entre eles. Mas os leitores do Última Hora jamais souberam disso. Em suas memórias, Wainer conta que “O jornal continuou fiel à linha editorial que sempre o orientou. (...) a figura de Getúlio deveria ser poupada de qualquer jeito”.

Gregório Fortunato, o chefe da segurança de Getúlio Vargas, com quem o presidente pouco simpatizava, teve uma ideia para solucionar os problemas enfrentados pelo seu governo: matar Carlos Lacerda. E ordenou que o fizessem – sem dizer nada a Getúlio.


No dia 5 de agosto de 1954, Lacerda e um major da Aeronáutica, são baleados na rua Toneleros (hoje chamada apenas de Tonelero, como se queixa Paulo Francis, em seu livro “O afeto que se encerra”, de 1980), em Copacabana. O telefone toca na casa de Samuel. É um repórter da Última Hora com más notícias para seu chefe: Lacerda havia sofrido um ataque e sobrevivera. Ao saber disso, Samuel deu um soco na mesa do telefone e disse, “merda”, como conta Danuza Leão em suas memórias.


“Lacerda soube utilizar-se teatralmente do episódio. (...) transformou seu quarto de hospital em centro de conspirações e comandou os desdobramentos da crise que levaria ao suicídio de Getúlio Vargas”, conta Samuel. Para começar, acusou Getúlio de ser o mandante do atentado. “Criou a então chamada ‘República do Galeão’, que passou a funcionar como uma delegacia paralela. As investigações apuraram que o mandante fora o chefe da segurança de Vargas, Gregório Fortunato”, relata Danuza em seu livro. A situação de Getúlio ficou insustentável. As forças armadas rebelaram-se de vez contra o presidente, exigindo sua renúncia.


Mesmo com Samuel distante do presidente, o Última Hora fez o que pôde para preservar a sua imagem e desvinculá-las das acusações feitas por Carlos Lacerda. E publicou no dia 23 de agosto de 1954, como manchete de capa a incitação de Getúlio ao confronto:



“Getúlio ao povo: só morto sairei do Catete”



Getúlio iria convocar o ministério para informar sobre sua renúncia. Mas o ódio a ele não esgotaria com ela. Benjamin Vargas seria, novamente, o que selaria a crise no governo do irmão.


Bejo havia sido chamado para depor na República do Galeão. E, abatido, sem a empáfia e truculência que caracterizavam seu comportamento nos tempos do Estado Novo, avisou Getúlio que ele seria o próximo. “Para um homem de 71 anos, tratava-se de uma humilhação insuportável.”, disse Samuel Wainer. Sem dizer nada ao irmão e melhor amigo, Getúlio, naquele momento, tomou a decisão mais inteligente da história política do Brasil.

Vestido num pijama de seda com listras de cor cinza, branca e carmim e mangas cumpridas, Getúlio, com a mão no bolso, passou pela filha Alzira e foi para o seu quarto, no último dos três andares do Palácio do Catete.
Relatou em carta sua decisão:

“Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim.
“Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao Governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculizada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.
“Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores de trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançaram até 500% ao ano. Na declaração de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder.
“Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.
“Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da Eternidade e saio da vida para entrar na História.”


Em seguida, posicionou no bolso do pijama, no lado direito do peito, a arma que acariciava no bolso quando passou pela filha, e atirou, encerrando sua vida.

A capa do Última Hora no dia 24 de agosto de 1954 foi:





Edição extra do Última Hora com a carta de suicídio de Getúlio.



O jornalista Augusto Nunes, assim como muitos historiadores, considera que “O suicídio foi o gesto político mais inteligente da história do Brasil. Preparou o terreno para [Getúlio fazer] seu sucessor, JK, e adiou o golpe militar de Estado em dez anos.”.




A arma com que Getúlio Vargas se matou (Fonte:http://www.cpdoc.fgv.br/nav_fatos_imagens/fotos/GetulioVargas/revol.jpg)



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